Às vezes acho que já nasci velha. Minha vó conta que no período que moramos no seu sítio, eu devia ter uns três anos, ela não deixava ninguém entrar em casa de tarde. Isso tudo porque eu tinha o costume de dormir depois do almoço e se me acordam antes da hora que eu deveria, n-a-t-u-r-a-l-m-e-n-t-e abria o berreiro e resmungava mau humorada até a noite – quando poderia dormir de novo para me recompor.
Eu tenho lá minhas prioridades, e parece que desde pequena alimento o meu maior objetivo na vida: viver até os 94 anos. Para isso durmo bem, me alimento e leio livros. Nunca gostei de muita conversa com as outras crianças, quando adolescente não gostava de adolescente, por algum motivo sempre preferi ouvir gente velha de verdade. As histórias e imagens de outras épocas alimentam meu mundo interior e hoje, dizem adulta, fujo para lá em busca de serenidade.
As palavras que uso não são minhas. Nunca criei uma palavra. Sou do tipo que pega emprestado, peço licença com os olhos e guardo pra usar mais tarde. As palavras que uso são heranças. Durmo com elas, me alimento, me banho, penteio meus cabelos e as escuto na construção de minha rotina. Tenho vontades que ainda não sei explicar, vivo para conhecer outras palavras. Roubá-las, escondê-las, misturá-las, decantando sentidos e sons, é a minha tentativa de vida para um dia ser velha. Velha e do tamanho certo. Como Maria Bethânia, na ocasião de uma entrevista, explicou: ‘‘Acham que eu sou muito metida, sou um pouquinho mesmo. Contudo, eu sei exatamente o meu tamanho, nem pra mais nem pra menos. Só o meu tamanho’’.
Sonhando com o dia que saberei o meu, procuro refúgios para resistir. Quando pequena vivia me escondendo atrás de uma moita. Alguém levantava uma questão polêmica nas conversas, eu não esboçava reação, não opinava. Se na escola alguém me agredia verbalmente, eu segurava o choro e fingia que aquilo não me atingia. Se fisicamente, eu fugia. Até hoje, precisando eu corro que é uma beleza. Tudo que acontecia eu dava um jeito daquilo não virar caso, a última coisa que eu queria era chamar a atenção e ter meu pai ou minha mãe resolvendo os meus problemas.
Lembro de uma vez, no Piauí, que para a semana de cultura cada turma iria representar com dança uma manifestação artístico-religiosa de outro estado brasileiro. Para a minha turma foi sorteada a Lavagem da escadaria do Bomfim. Nessa ocasião a minha moita foi fácil, ‘‘Professora não posso participar porque minha família é crente…’’ E fiquei lá, dois meses inteiros assistindo os ensaios sentada sozinha na arquibancada do ginásio. Lembro daquela solidão, de como eu tinha vontade de dançar, do tambor, da melodia e do aroma das flores. Tudo era movimento e o sentia muito distante de mim.
Cresci me esquivando e me escondendo durante tanto tempo que para conseguir sobreviver entre os brancos da faculdade eu levava minha própria moita pro campus. Dança? Não gosto. Bebe? Não posso. Canta? Não sei. Quem é seu pai? E sua mãe? Eles trabalham? Onde você mora? Tua roupa não tem marca? E esse cabelo? E esse olho? Quem é você? Não conheço. E talvez não conhecesse mesmo. O esforço para não ser alguém que incomode os outros, transforma-se rapidamente num caminho de auto-desconhecimento.
Viver sob o jugo de uma moita pode parecer um esconderijo seguro, esconde boa parte da gente pros outros, até oferece um pouco de sombra, mas ela não consegue esconder o nosso próprio corpo de nós mesmas. Este meu corpo acumulado de dúvidas, desejos e vida há tantos anos. Inflado, encharcado, sobrecarregado.
Ser um corpo não é tarefa fácil. Meu corpo sou eu, e eu não me conheço. Tenho sede, o que bebo? Se fome, onde como? No cansaço, durmo com quem? Quando amo, como entrego? Meu corpo é eu, e quero desejar, dançar, correr, abrir caminhos de festejo e trabalho. Meu corpo banhado, ter o prazer da escrita, escuta, leitura. Poder cantar, pendurar, amarrar, abraçar, chorar, me fechar, e quando faz sol depois da chuva, ou chove depois do calor, me abrir.
Nesta descoberta de cuidado, fazer do meu eu corpo um refúgio onde envelhecer.
Publicado na Revista Meu Corpo Negro, em outubro/2022